Bissextos do Pinharas e Alhures

23 de março de 2022 Off Por funes

Bissextos do Pinharas e Alhures por José Mota Victor

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 25/06/2021 .

Na revista argentina Sur, de 1942, Vinicius de Morais definiu os poetas bissextos como aqueles “sem livros de versos, bissextos pela escassez de sua produção”. Cita assim alguns consagrados escritores da nossa literatura como Aníbal Machado e Pedro Nava, não esquecendo o Pedro Dantas “cujo poema A Cachorra passou a ser uma obra-prima da literatura brasileira”.

 Foi o próprio Pedro Dantas quem definiu o antônimo desses poetas de contumazes, como é o caso de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mario Quintana, Ferreira Gullar, Olavo Bilac, João Cabral de Melo Neto, Manoel de Barros e tantos outros gênios de nossa literatura. Francisco Otaviano de Almeida Rosa deveria estar ao lado de Rodrigo Melo Franco de Andrade (ode pessimista) na constelação dos grandes poetas brasileiros bissextos se tivesse escrito apenas Ilusões da Vida, mas não se conteve e escreveu outros poemas, entre eles Nessum Maggior Dollor: “Ai! Nesta vida tão fecunda em mágoas, / Qual é a maior dor? / Conhecerse que é vil uma mulher / E ainda ter-lhe amor!” Manuel Bandeira escreveu que era próprio dos bissextos “certa dor nos acidentes passionais.

 O bissexto quando se embeiça por uma mulher que não pode ser dele, faz verso na certa”. Em A Vida Amorosa dos Poetas Românticos, Vicente de Paula Vicente de Azevedo insinua a infidelidade da esposa do poeta Otaviano, dona Eponina Moniz Barreto. Na Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos, Bandeira endossa as palavras de Vinicius dizendo que “bissexto é todo poeta que só entra em estado de graça de raro em raro”. Relaciona dezenas de poetas na antologia, entre eles: Afonso Arinos, Aurélio Buarque de Holanda, Di Cavalcanti, Euclides da Cunha, Gilberto Freire, Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz, Sérgio Buarque de Holanda e Tristão de Athayde. Na segunda edição da Antologia, em 1964, o vate pernambucano retirou da categoria de bissextos os poetas Joaquim Cardoso e Paulo Mendes Campos que publicaram livros de poemas. Eles poderiam muito bem dizer: “Já fui um bissexto!”.

 Por outro lado, Pedro Nava (o defunto) deu um tiro na cabeça e morreu bissexto. Numa entrevista à Gazeta do Povo, o escritor Miguel Sanches Neto, autor do romance Chove Sobre Minha Infância, afirmou: “Eu sou apenas um leitor que tem síndrome lírica passageira”, portanto um “bissexto” confesso. Tenho uma opinião formada sobre essa questão. Classificaria os bissextos em duas categorias: a primeira chamaria de “Bissextos da Gema”, aqueles que não publicaram livros, mas apenas meia dúzia de poemas dispersos em revistas e jornais. A segunda seria simplesmente “Bissextos”, aqueles que publicaram somente um livro e esporadicamente escrevem poemas. A fronteira entre bissextos e contumazes deve ser bem definida, depois da abalizada opinião de Manoel Bandeira e Vinicius de Morais, o assunto foi dado por encerrado. Para falar dos poetas da minha terra natal citaria o caso de Ernani Sátyro que tem publicado dez poemas na Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos, do Bandeira.

O meu entendimento é que nesse período Sátyro seria um “Bissexto da Gema” e, depois da publicação do livro O Canto do Retardatário, apenas um “Bissexto” comum. O mais bissexto dos nossos poetas é Manuel Romualdo da Costa, conhecido popularmente por Manduri, que escreveu um único soneto em toda sua existência, dedicado a Romualdo, o seu filho morto. Manduri era irmão de Porfírio Higino da Costa, herói da guerra do Paraguai que participou de 52 batalhas e morreu na vila do Teixeira vítima das moléstias contraídas na guerra.

Na ribeira do Pinharas conheci apenas um contumaz de primeira grandeza, o inspirado poeta Tarcísio Meira César, que também era um encantador de palavras quando se aventurava na prosa: “Invejo o Dom Quixote, que tinha só um amigo e um cavalo e meia-légua de terra na República da Mancha. Hoje o meu roçado está reduzido a um pequeno bloco de cimento alugado, com as raízes de duas centenas de livros plantadas, duas ou três redes armadas em apertados cubículos e lembranças de mulheres que chegaram, dormiram e se foram, dias menos, dias mais, e da amiga que me deu um filho, sem dúvida o meu melhor poema”. Era insatisfeito por ter publicado os seus versos e os seus livros, preferia na lápide a quadra de Leminski: “Aqui jaz um grande poeta / Nada deixou escrito/ este silêncio, acredito/são suas obras completas”.

No meu tempo de universidade, fui “Bissexto da Gema” com a publicação de um livreto mimeografado intitulado Um Poeta a Procura de Leitores ou Meia Dúzia de Versos. Depois da publicação do livro As Sete Palavras de Cristo na Cruz e Outros Sonetos, eu me tornei um desimportante “Bissexto”, jamais serei um contumaz, adoro, mas não tenho vocação para o verso, segundo o professor Dageshé pura graça ser iluminado pelas musas do Olimpo. Fernando Pessoa disse que o poeta é um fingidor, eu sou apenas um romancista e como tal um grande e hábil mentiroso.

O protagonista do romance Duck City – Uma cidade encantada não muito longe daqui, era um convicto “Bissexto da Gema” que escreveu apenas quatro poemas durante toda a sua existência: um ovillejo, um soneto e dois haikais. Disse certa vez, durante uma palestra na Sociedade de Temperança do Pinharas, que os quatro poemas de sua parca produção literária eram suas obras completas e definitivas. Apaixonado pelos romances do Louro do Jabre, retirou um aforismo seminal do livro Bolsos Vazios: “Poucos defeitos me repugnam tanto quanto a modéstia”.

Aproveitava-se do anexim de Allyrio Meira Wanderley para dizer que a arquitetura medieval do seu ovillejo A Última Canção de Diana era de uma beleza extraordinária. Se eu soubesse que o personagem era tão excelente na arte de poemar não teria publicado os meus liliputianos sonetos. A criatura superando o criador. Lembro agora os versos do Bruxo do Cosme Velho: “Sei de uma criatura antiga e formidável, / Que a si mesma devora os membros e as entranhas, / Com a sofreguidão da fome insaciável”.