A Revolta da Chibata e a atualidade brasileira

12 de junho de 2023 Off Por funes

A Revolta da Chibata e a atualidade brasileira por Delzymar Dias.

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 09/06/2023.

Homem negro é carregado com pés e mãos amarrados após ser preso, acusado de furtar duas caixas de bombons de um supermermercado. O caso aconteceu em São Paulo, no ano da graça de 2023, mas a maneira como o nosso estado trata as pessoas negras ao longo da história do Brasil parece não mudar, apesar da promessa iluminista de que o mundo seria bem melhor quando as pessoas tivessem acesso pleno à informação e ao conhecimento.

João Cândido, conhecido como “Almirante Negro”, líder da Revolta da Chibata

João Cândido, conhecido como “Almirante Negro”, líder da Revolta da Chibata

Casos como esse se repetem e escancaram a necessidade de entender e explicar as relações sociais, culturais e políticas no Brasil do passado e do presente através da escravidão. Essa tragédia conduzida por humanos ainda representa um alicerce das relações que mantém feridas abertas em um país que vivenciou quatro séculos de escravidão e um século de exclusão deliberada e proposital da população negra. Às vezes tenho a impressão de que o racismo deu certo no Brasil. A negação dessa prática fortalece o discurso desumanizador de quem acha normal chamar uma pessoa negra de macaco. Sim, existe um processo de desumanização em curso que começa com a chegada do colonizador. Desumanizamos indígenas, africanos e seus descendentes, mulheres e membros da comunidade LGBTQIA+ com um discurso de que isso é uma bobagem, mesmo com as estatísticas escancaradas que nos impede de fugir dessa realidade.

Esse racismo é tão escancarado que no início dos anos 1970, em plena Ditadura, os músicos Aldir Blanc e João Bosco resolveram homenagear em uma de suas canções o marinheiro João Cândido, um dos líderes da Revolta da Chibata, movimento que ocorreu no Rio de Janeiro, então capital do Brasil, em 1910. A Ditadura obrigou, através da censura, que a letra da música ‘Mestre Sala dos Mares’ fosse alterada sob a justificativa de “apologia ao negro”. A perseguição ao “Almirante Negro” continuou mesmo depois do fim da Revolta. Ele sofreu tentativas de assassinato, foi torturado e perseguido, sendo que anistia só veio em 2008, quase 40 anos após a sua morte. Nesse evento, onde foi inaugurada uma estátua em homenagem a João Cândido, o presidente da República exaltou o movimento e a figura de seu líder. O detalhe aqui é que não houve nenhuma participação da Marinha ou do Ministério da Defesa, que continuam a não reconhecer o movimento como legítimo. No início da década de 30, houve uma tentativa de silenciamento da publicação do escritor francês Benjamin Péret, que realizou uma importante pesquisa sobre a revolta liderada por Cândido. Até hoje, não se tem notícia sobre a possibilidade de existência de um único exemplar dessa obra.

A maneira como o estado brasileiro reprimiu e silenciou movimentos populares foi totalmente diferente da maneira como esse mesmo estado tratou movimentos elitistas ao longo da nossa história. Ao analisarmos o enfrentamento do estado à Cabanagem, movimento popular que ocorreu em 1835 no norte do país, foi totalmente diferente do combate à Revolução Farroupilha, movimento de elite que ocorreu no Rio Grande do Sul, onde os revoltosos foram plenamente anistiados. De um lado, barbárie, crueldade e execuções com 30 mil mortes, de outro lado, aqueles que insurgiram contra o estado serão incorporados ao exército oficial, mantendo, inclusive, os seus salários originais.

A Revolta da Chibata é o símbolo de um país que, além de perseguir a população negra, ainda tenta negar ou esconder a sua história. No início do século 20, os comandantes dos navios eram, majoritariamente, brancos. Já os marinheiros que desempenhavam os trabalhos braçais eram, majoritariamente, negros. Esses negros eram submetidos a diversos
castigos corporais, entre eles, as chicotadas clássicas que eram aplicadas nos troncos durante o auge da escravidão. O estopim para a revolta foi um motivo banal, um dos marinheiros foi visto entrando com duas garrafas de cachaça no navio, o que motivou uma punição absurdamente anacrônica, sádica e desproporcional, já que ele seria condenado a receber 250 chibatadas. Estamos vendo o presente repetir o passado. Foram duas garrafas de cachaça, mas poderia ser duas caixas de bombons, como no caso citado no início desse texto.

Em uma fazenda na divisa do Espírito Santo com Minas Gerais, trabalhadores foram resgatados pelo Ministério do Trabalho por estarem vivendo em condições análogas à escravidão. Eles eram chicoteados pelo capataz da fazenda, em pleno 2023. Precisamos enfrentar esse debate de uma maneira séria. É inadmissível que o Brasil continue preso a situações absurdas como essa sem buscar entender a sua própria história.