Cultura, memória e tradições locais

23 de março de 2022 Off Por funes

Cultura, memória e tradições locais por Prof. Delzymar Dias

 

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 16/07/2021 .

 

A memória constitui um elemento afetivo muito forte e provoca uma ligação intensa com o passado e a construção da cultura no qual o indivíduo está inserido. O compartilhamento das lembranças faz com que as pessoas dialoguem e se reconheçam como parte de um grupo social, além de fornecer elementos históricos e sociológicos para interpretar o tempo e todas as suas características.

 O historiador Edward Hallet Carr, em seu livro O que é história?, diz que, logo que nascemos, o mundo começa a agir sobre nós e a transformar-nos de unidades meramente biológicas em unidades sociais. Todo o ser humano em qualquer estágio da história ou da pré-história nasce em uma sociedade e, desde os seus primeiros anos, é moldado por essa sociedade.

A memória pode ser utilizada como componente mais amplo, como forma de identificar fatores gerais de grande impacto no cotidiano, a exemplo da escravidão e os seus diversos legados negativos ou os golpes e as ditaduras ao longo da República Brasileira. Porém, existe um ponto mais específico no qual a memória exerce um papel essencial através do cultivo e da manutenção das histórias locais, geralmente transmitidas por meio da oralidade. Certa vez, ao ministrar uma disciplina de Metodologia e Fundamentos do Ensino de História em uma turma do Curso de Pedagogia, estimulei meus alunos e alunas a buscarem memórias de fatos, eventos e costumes com os quais eles possuíam alguma relação.

Dessa simples atividade, surgiram preciosidades em forma de memórias e relatos que fazem parte do nosso imaginário. Comadre Florzinha apareceu em boa parte deles. Protetora dos animais e da natureza, faz parte do folclore regional brasileiro, sendo uma das mais populares em nossa região.

Também apareceram relatos e memórias de grandes secas e enchentes, casos sobrenaturais, árvores assombradas, histórias narradas através da literatura de cordel, leilões de quermesse nas festas de padroeira e diversas superstições para todos os tipos de situações sociais.

 Todo sertanejo já escutou alguma história sobre as botijas enterradas no passado. Essas memórias transitam entre a realidade histórica factual e o forte componente sobrenatural. Várias pessoas enterravam suas riquezas em botijas e quando havia alguma morte repentina, começava-se a especulação sobre o local onde o finado havia enterrado seus recursos.

Essa informação chegava através de um sonho ou até de uma aparição daquela alma que desejava paz espiritual. A pessoa escolhida para retirar a botija só teria sucesso na empreitada se obedecesse a algumas regras, como não contar a mais ninguém sobre o fato, iniciar a busca sempre a meia-noite, nunca olhar para os lados ou para trás durante o processo e nunca desistir depois de começar.

As regras variam de acordo com cada região, que estabelece os ritos a partir do compartilhamento oral das memórias e costumes locais. Outro tema importante que envolve a construção das memórias regionais através da oralidade é a religiosidade e um dos pontos mais representativos são as histórias e as memórias produzidas no entorno da Semana Santa. Esse período que marca a Paixão, a Morte e a ressurreição de Jesus Cristo constituem um dos aspectos mais relevantes da cultura local.

A Procissão dos Homens, do Senhor Morto, a Matança do Judas e o jejum são alguns exemplos de eventos que fazem parte do conjunto de nossas memórias para esse período. Desde o ano de 2020, a Procissão dos Homens se tornou Patrimônio Cultural Imaterial do município de Patos, através da aprovação da lei nº 5.399/20. As melhores histórias desse período nascem a partir das memórias daquilo que poderia ou não ser feito durante o tempo santo.

Não podiam ser realizados nenhum tipo de serviço doméstico, não podia comer carne, falar palavrão ou castigar os filhos. Correr também era proibido, assim como ouvir música, comer doces, namorar, tomar banho e assoviar. Esse resgate da memória e dos costumes de nossos antepassados se contrapõe a atualidade onde essas tradições vêm perdendo força, abrindo espaço para novas crenças e costumes nas localidades.

É essencial conhecer a realidade cultural e as memórias que construíram e continuam presentes nas comunidades, sejam elas urbanas ou rurais. Temos muito a aprender com cada realidade que nos é apresentada, a exemplo da Comunidade Quilombola da Serra do Talhado, em Santa Luzia, ou as histórias que envolvem a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Pombal.

A historiadora Verena Alberti, ao falar sobre a importância da utilização da história oral nesse contexto, diz que recuperar aspectos individuais de cada sujeito, ao mesmo tempo ativa uma memória coletiva, pois, à medida que cada indivíduo conta a sua história, esta se mostra envolta em um contexto sócio-histórico que deve ser considerado.