Enem e cultura local

23 de março de 2022 Off Por funes

Enem e cultura local por Delzymar Dias.

 

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 24/12/2021 .

 

O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) surgiu com o objetivo de avaliar o desempenho escolar dos estudantes ao final da educação básica. A partir de 2009, o exame passa a ser usado como forma de acesso ao Ensino Superior, sendo criado logo em seguida o Sisu, que é o Sistema de Seleção Unificada, no qual as universidades lançam uma quantidade disponível de vagas, o aluno realiza a sua inscrição no sistema e a seleção ocorre a partir da classificação das notas, respeitando as especificidades de cada instituição.

O exame é um sucesso para aquilo que, objetivamente, propõe: selecionar estudantes através de uma prova para o ingresso na universidade. O problema é que existem questões educacionais e culturais que vão além da objetividade pragmática que uma prova carrega. Sendo assim, proponho um contraponto pedagógico a partir de três observações que não são levadas em consideração e que precisam retornar ao debate sobre o maior exame vestibular do país e um dos maiores do mundo. O primeiro ponto tem relação com a história e a cultura regional.

 Por ser um exame nacional, o Enem dificilmente aborda movimentos locais muito específicos, o que termina provocando um problema significativo nas abordagens dos conteúdos que envolvem as histórias e cultura das localidades nas quais os alunos estão inseridos. Temas regionais como a Revolta de Princesa e a passagem da Coluna Prestes pela cidade de Piancó não encontram tanto destaque no Ensino Médio aqui na Paraíba. As escolas adotam cada vez mais sistemas de ensino que produzem materiais didáticos com abordam nacional, com foco no exame. Tanto o professor como o aluno sabem que é pouco provável que caia alguma questão no Enem sobre esses temas.

 O resultado disso é um desconhecimento constrangedor e injustificável sobre os fatos que ocorreram em nossa região e que servem até hoje de uma ampla inspiração para a produção cultural regional através de livros, filmes, poesias, músicas, causos e histórias contadas e repassadas através das gerações. O acesso a arte e a cultura local e regional praticamente desaparecem na etapa final da educação básica, tendo como ponto de resistência bravos professores que, através de projetos esporádicos, tentam manter acessa a chama simbólica desses regionalismos.

 Os estudantes da cidade de Pombal precisam conhecer mais Leandro Gomes de Barros, um dos seus filhos mais ilustres, reconhecido como um dos maiores poetas brasileiros. Patos, a cidade que é a capital do sertão da Paraíba, precisa saber mais sobre Silvino Pirauá, um dos criadores do romance em versos e um dos primeiros a utilizar a sextilha. Foi aqui também que ocorreu, no final do século 19, a lendária peleja entre Inácio da Catingueira e Romano da Mãe D’Água, marco brasileiro das pelejas e repentes que teria durado três dias e que colocou em confronto não apenas pessoas, mas símbolos da nossa construção histórica como a escravidão e o latifúndio. O segundo contraponto faz referência a criatividade.

 Como o Enem é um exame nacional que propõe avaliar a educação básica, os sistemas de ensino terminam adaptando situações que misturam práticas pedagógicas com ação de marketing. Um exemplo disso são os simulados, uma bateria com dezenas de questões de múltipla escolha que estão sendo realizados cada vez mais cedo nas séries iniciais do ensino fundamental. Esse tipo de avaliação quando é feita de maneira isolada e única, contribui para a mecanização do processo de aprendizagem por parte das crianças, que, nessa faixa, vivem o ápice da criatividade.

 A escola não pode ser um local de limitação cognitiva para as crianças. O sentido pedagógico de uma questão/alternativa correta ou incorreta muda de acordo com o segmento e a faixa etária dos educandos. Caso isso não seja levado em consideração, todo o processo de ensino-aprendizagem estará comprometido, tornando a escola um ambiente pouco estimulante. O terceiro e último contraponto possui relação com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que garante o atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, transversal a todos os níveis, etapas e modalidades, preferencialmente na rede regular de ensino.

A padronização dificulta o atendimento educacional especializado para esses jovens, que enfrentam, junto com as escolas e os professores, problemas estruturais e pedagógicos que dificultam a inclusão desses alunos. Os sistemas de ensino que ostentam uma média alta de notas e um número gigante de aprovações no Enem deixam claro que a prioridade é a competitividade e o individualismo, o que torna mais difícil a vida escolar de alunos que precisam de um acompanhamento mais especifico.

Além disso, ainda temos uma dificuldade enorme em disponibilizar obras literárias em Braille ou implementar políticas de valorização para o intérprete de Libras nas instituições. Tudo isso dificulta o acesso desses jovens a produção cultural e afasta cada vez mais esse grupo do processo de inclusão que facilitaria a aprovação no Enem e o consequente ingresso na universidade. É preciso buscar alternativas viáveis que aprimorem todos esses processos.