O artífice da anistia

O artífice da anistia

23 de março de 2022 Off Por funes

O artífice da anistia por Flávio Sátiro Fernandes.

 

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 17/09/2021 .

 

A produção intelectual de Ernani Sátyro, todos sabem, se espalha por diversos segmentos, tais como o romance, o conto, a crônica, o ensaio, que formam a sua prosa, assim como pela poética, na qual se exprime através de variados modelos, desde quando era, ainda, na expressão de Manuel Bandeira, um poeta bissexto, espaçadamente presentes ou divulgados em suplementos literários, jornais e revistas, nunca em livro, que somente apareceu em 1985, na maturidade, daí o nome que deu ao volume em que reuniu suas poesias: Canto do retardatário, com o qual saiu da condição de poeta bissexto para a situação antônima, que Pedro Dantas chamou de contumaz, epíteto que Manuel Bandeira aplaudiu, chamando-o de perfeito.

Falando do setor em que Ernani Sátyro mais atuou, que foi a política, nela desenvolvendo a oratória e dentro desta a oratória política, isso nos leva a assinalar, como é natural, em primeiro plano, a sua atividade legislativa, durante mais de 30 anos, quando teve a seu cargo a relatoria de grandes e importantes proposições que tramitaram pelo Congresso Nacional, notadamente na segunda fase de sua atuação no parlamento brasileiro, após o interregno em que foi chamado a desempenhar duas importantes funções públicas, nos dois outros poderes da República: no judiciário, como ministro do Superior Tribunal Militar e no executivo, como gestor público, mais especificamente, como governador do Estado da Paraíba. Após deixar o governo paraibano e cumprir uma quarentena forçada de quatro anos, sem nenhum mandato, empreendeu um retorno à sua casa de antanho ou o que ele chamou “de volta aos velhos caminhos”, ocupando, novamente, uma cadeira na Câmara dos Deputados.

Ali teve uma atuação ímpar e embora defrontando-se com uma composição inteiramente diferente daquela com que se acostumara a conviver, durante mais de vinte anos, jamais se deixou abater ou intimidar e se conduziu com bravura e altaneria, relatando processos em que tais qualidades eram exigidas ao seu condutor, dentre eles o projeto de lei que concederia anistia aos envolvidos em atos de subversão. A partir de certo instante da história brasileira posterior a 31 de março de 1964, a concessão de anistia aos implicados em crimes políticos, ocorridos a partir daquela data, passou a ser uma reivindicação de toda a sociedade brasileira e uma medida reconhecidamente necessária, até por parte daqueles que detinham o poder à época.

 Por ela passaram a se empenhar ou a ela emprestaram o seu apoio líderes da oposição, assim como do governo. Destacaram-se entre aqueles Ulysses Guimarães, Nelson Carneiro, Tancredo Neves, Pedro Simon, Marcos Freire, Freitas Nobre, Paulo Brossard, Getúlio Dias, Humberto Lucena, Osvaldo Lima, entre outros. Nas trincheiras do situacionismo, vários se sobressaíram, a exemplo de Aderbal Jurema, Jarbas Passarinho, Ernani Sátyro, Murilo Badaró, Lomanto Junior, Antônio Mariz, Cantídio Sampaio, Djalma Marinho, Carlos Chiarelli, Aloysio Chaves e vários mais. A proposta de anistia, adotada pelo presidente João Figueiredo, teve sua mensagem assinada a 27 de julho de 1979, no Palácio do Planalto, em solenidade que contou com a presença do vice-presidente da República Aureliano Chaves, do senador Luiz Viana Filho, presidente do Senado Federal, do deputado Flávio Marcílio, presidente da Câmara dos Deputados, do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Antônio Nader, senadores e deputados federais, de autoridades distritais e outras figuras gradas. Recebida no Congresso, em 28 de julho, a mensagem presidencial propondo a anistia foi lida na mesma data e no mesmo dia foram escolhidos os membros da Comissão Mista.

A comissão foi instalada em 2 de agosto, oportunidade em que Ernani Sátyro foi indicado relator da matéria. Os trabalhos da comissão compreenderam a apresentação de emendas, análise das emendas pelo relator, oferecimento do parecer pelo relator, com exame pormenorizado das emendas, sua discussão e votação e, finalmente, votação do parecer do relator. Como se vê, grande parte dessas tarefas regimentais foi confiada ao relator e no seu cumprimento desdobrou-se Ernani Sátyro, cumprindo-as dentro do prazo estabelecido, de modo a não atrasar a marcha do projeto que naquele momento representava o grande anseio da alma brasileira. Cada uma das mais de 300 emendas foi por ele minuciosamente analisada, sempre com uma justificativa, com um fundamento, com uma explicação, salvo quando repetitiva ou quando obviamente incabível.

 E assim procedendo, conseguiu o amigo velho dissecá-las todas no exíguo prazo, de tal modo que na data aprazada logrou oferecer seu parecer final que foi aprovado. Mas o trabalho maior e mais importante do relator não foi esse que diríamos braçal, de redigir uma bem escrita e bem fundamentada peça jurídica.

Sua tarefa primordial, levada com êxito, foi, com certeza, aquela estreitamente ligada às conversações, às negociações parlamentares, ao convencimento, de modo que, ao final, os principais líderes oposicionistas se manifestassem favoráveis ao seu substitutivo, pois foram tantas as alterações por ele feitas ao projeto original do governo, decorrentes das emendas, na medida do possível, aceitas ou por ele mesmo oferecidas, que um substitutivo se fazia imprescindível, sob pena de a proposta governamental se transformar em um monstrengo jurídico-legal. Líderes oposicionistas, de fato, se mostraram favoráveis ao substitutivo, aprovado na comissão e, em seguida, no plenário, indo, em seguida, à sanção presidencial. Por todo o seu trabalho, a sua luta, o seu denodo, Ernani Sátyro pode ser considerado e chamado o artífice da anistia, sem a qual os exilados brasileiros não poderiam ter voltado à pátria, a partir de 28 de agosto de 1979