Para quem não gosta de futebol

Para quem não gosta de futebol

24 de dezembro de 2022 Off Por funes

Para quem não gosta de futebol por Delzymar Dias.

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 23/12/2022.

 

Uma partida de futebol nunca é apenas uma partida de futebol. Vinte e dois jogadores correndo atrás de uma bola não dizem nada sobre o esporte mais popular do mundo. O escritor uruguaio Eduardo Galeano transformou a sua paixão pelo futebol em literatura. Ao falar sobre o espaço sagrado de um campo de futebol, dizia que aquilo representava a única religião que não tem ateus, já que é no campo que são apresentadas as divindades consagradas pelos deuses da bola em um duelo de carne e osso contra os demônios do momento.

Existem aqueles que defendem a ideia de que esse esporte deve ser visto sem levar em consideração aspectos ou contextualizações históricas e políticas mais profundas, o que também é complicado, já que é impossível dissociar os aspectos históricos de seu entorno. O Flamengo, hoje rubro negro, foi tricolor até a Primeira Guerra Mundial, sendo chamado de cobra-coral até 1916. A alteração no uniforme ocorreu porque estampava as cores da Alemanha que, naquele momento, era uma das protagonistas da Primeira Guerra Mundial. No conflito, o Brasil se aliou à Tríplice Entente, formada pela Inglaterra, França e Estados Unidos.

Futebol de
Pelé invadiu
a literatura de
uma forma
tão brutal que
escritores
de diversos
gêneros e
nacionalidades
se renderam
ao seu talento

O Vasco fez história no futebol, sendo perseguido por outras agremiações pelo simples fato não fazer distinção entre brancos e negros. Os rivais do cruzmaltino chegaram a criar um nova liga no início dos anos 1920 e exigiram que o Vasco excluísse 12 jogadores que, segundo os dirigentes dessa nova associação, “não apresentavam condições sociais apropriadas para o convívio esportivo”. O Vasco enfrentou essa situação e se recusou a compactuar com o racismo evidente. Venceu o Campeonato Carioca de 1923 com um time composto pelos excluídos da sociedade, entre eles, negros, brancos pobres e analfabetos. O cronista Mário Filho chamou isso de revolução, escrevendo que “desaparecera a vantagem de ser de boa família, de ser estudante, de ser branco. O rapaz de boa família, o estudante, o branco, tinha de competir, em igualdade de condições, com o pé-rapado, quase analfabeto, o mulato e o preto, para
ver quem jogava melhor”.

No início dos anos 1980, o Corinthians matou no peito a democracia em sua luta pela liberdade política. A chamada Democracia Corinthiana foi um movimento que começou como um processo interno de reorganização do clube e acabou por abraçar o momento de redemocratização que o país vivia com a expectativa do fim da ditadura iniciada em 1964. Liderado por Sócrates, que era jogador de futebol, médico e foi capitão da seleção na copa de 1982, o movimento contribuiu para o engajamento de um segmento importante da sociedade na luta pelas Diretas Já!.

Pelé é outro exemplo de como o futebol não está restrito apenas ao que acontece em campo. No dia 10 de abril de 1961, o então presidente Jânio Quadros enviou um comunicado ao Conselho Nacional de Desportos, solicitando providências urgentes para evitar a contratação do atleta por clubes estrangeiros. Mencionou que “a exportação de nossos atletas não nos interessa” e sugeriu que havia uma espécie de plano de outros países para enfraquecer a seleção brasileira, que tinha sido campeã do mundo em 1958.

O futebol de Pelé invadiu a literatura de uma forma tão brutal que escritores de diversos gêneros e nacionalidades se renderam ao seu talento. Vargas Llosa veio passar a lua de mel no Rio de Janeiro e o primeiro lugar que levou a esposa foi ao maracanã para ver o “Rei” jogar. Drummond rendeu-se à genialidade do jogador no texto que falou sobre o milésimo gol em 1969 e Eduardo Galeano chegou a escrever que recebemos de Pelé oferendas de rara beleza: momentos desses tão dignos de imortalidade que a gente pode acreditar que a imortalidade existe. Soma-se aos já citados outros grandes imortais da escrita como Rachel de Queiroz, Vinícius de Moraes e Luis Fernando Veríssimo. Ninguém escreveu sobre futebol como o nordestino Nelson Rodrigues. Foi um gênio e o primeiro a chamar Pelé de “Rei” ainda em 1958, sendo que o palco dessa coroação foi uma partida no Maracanã, onde ele fez quatro dos cinco gols da vitória do Santos.

O futebol é algo tão intenso que muitas vezes a vitória é apenas um detalhe que torna o espetáculo mais fascinante. Nunca será apenas um jogo. A defesa do goleiro inglês Gordon Banks na cabeçada de Pelé na Copa de 1970 pode levar o professor de física a ensinar sobre gravidade, a “mano de dios” de Maradona na copa de 1986 pode ser tema de filosofia em uma aula sobre ética e o professor de matemática pode falar sobre ângulos usando a defesa monumental com o pé do goleiro Martinez na Copa deste ano.