O espelho partido dos anos

24 de novembro de 2025 Off Por Funes Patos

O espelho partido dos anos Por Lucas Andrade de Morais *.

Texto extraído da coluna FUNES do Jornal A União publicado na data de 21/11/2025.

 

“Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro” escreveu Cecília Meireles no poema “Retrato”, abrindo a ferida que ainda evitamos tocar. Começo por ela porque nenhuma outra voz traduz com tanta delicadeza a tensão entre o que fomos e o que nos tornamos, entre o rosto que lembramos e o que o espelho já não devolve. O envelhecimento, fenômeno tão natural quanto respirar, ainda é tratado como um acidente indesejado, quase um erro do tempo. Em 2025, o tema atravessou tanto o Enem quanto o Enade/Prova Nacional Docente, obrigando jovens e professores a encararem aquilo que muitos preferem ignorar: o idadismo, a resistência social à passagem dos anos e o incômodo diante da velhice que nos habita e inevitavelmente nos alcança.

Vivemos em um tempo que celebra a juventude como capital simbólico e econômico. Procedimentos estéticos, cirurgias plásticas e filtros digitais produzem uma juventude infinita, quase artificial, como se a velhice fosse um inimigo a ser vencido. A cultura do rejuvenescimento se transformou em uma narrativa social dominante, e a aversão às rugas, às marcas e à lentidão virou uma forma silenciosa de violência cultural. Ser velho tornou-se, para muitos, sinônimo de inadequação. E esse padrão se espalha: o velho é substituído no mercado de trabalho, ignorado em debates públicos, apagado das estratégias de comunicação e, em alguns casos, tratado como um obstáculo para a inovação.

Esse mesmo movimento de apagamento se reflete na forma como lidamos com a cidade. Prédios antigos são demolidos sem hesitação para dar lugar a construções de arquitetura padronizada, cinzenta, sem identidade. Casas que abrigaram gerações cedem espaço a estacionamentos, fachadas históricas evaporam para dar vez a empreendimentos idênticos em qualquer esquina do país. É como se o passado fosse um peso atrapalhando o avanço, quando, na verdade, ele é solo, raiz, memória coletiva. A pressa da modernidade muitas vezes sufoca o tempo da história, substituindo singularidades por superfícies lisas, limpas e esquecíveis.

Nas artes, o mesmo pensamento reducionista aparece quando se associa museus a “coisas velhas”, como se o valor do passado residisse apenas na poeira. Essa visão empobrecida revela um desconhecimento profundo do papel da cultura material e imaterial. Não se trata de guardar objetos antigos, mas de preservar modos de existir, narrativas de comunidades, gestos, rituais, técnicas, afetos. Cada peça museal é um corpo de memória. Cada acervo, uma forma de resistir ao desaparecimento. E, ainda assim, o discurso de que o novo é superior ao antigo ecoa forte, ignorando que nenhuma sociedade se reinventa amputando suas raízes.

Nas famílias, o abandono das memórias dos mais velhos é ainda mais doloroso. Avós que foram guardiões de histórias, receitas, profissões, palavras e ritmos são hoje frequentemente ignorados em meio ao ritmo acelerado das telas. O diálogo se perde, a escuta diminui, as narrativas que antes atravessavam gerações ficam retidas na garganta dos idosos. Quando se deixam de ouvir os velhos, não se apaga apenas um indivíduo. Apaga-se uma linhagem inteira. A história familiar vai se desfazendo, e com ela perdemos a possibilidade de compreender nossa própria origem, nossa identidade, nossas cicatrizes herdadas.

Na escola, esse apagamento se repete. Projetos que envolvem memória, oralidade, tradições locais ou saberes comunitários têm espaço reduzido diante de currículos cada vez mais acelerados e tecnocráticos. O conhecimento vivido transforma-se em algo supostamente ultrapassado, como se a experiência não fosse, ela própria, uma forma viva de inteligência.

Belchior, em “Como nossos pais”, cantou que “o novo sempre vem”. É verdade: o novo chega, irrompe, desafia, abre portas. Mas antes disso, ele pergunta de onde veio. E é nessa pergunta que muitas vezes fracassamos. Queremos o novo sem carregar o peso simbólico do passado, sem reconhecer que continuamos sendo, como diz o próprio Belchior, os mesmos. Entretanto, ser como nossos pais não deveria significar repetição acrítica. Deveria significar continuidade, herança, respeito e aprendizado.

Estamos preparados para aprender com o passado? Estamos prontos para enxergar a velhice não como erro, mas como patrimônio? Estamos dispostos a ouvir aqueles que viveram antes de nós, ou continuaremos substituindo rostos, casas, objetos, histórias e pessoas como quem atualiza um aplicativo?

A velhice é nosso espelho mais radical. Nela vemos o que deixamos para trás e o que ainda podemos ser. Enquanto sociedade, só teremos futuro se formos capazes de honrar nossas rugas coletivas, nossos telhados antigos, nossas memórias de família, nossos mestres do tempo. O novo sempre virá, mas talvez seja hora de parar e perguntar: que valor terá o novo se não soubermos mais reconhecer quem fomos?

*Escritor e pesquisador.