O que Kafka ainda nos ensina sobre mudar

1 de dezembro de 2025 Off Por Funes Patos

O que Kafka ainda nos ensina sobre mudar Por Lucas Andrade de Morais *.

Texto extraído da coluna FUNES do Jornal A União publicado na data de 28/11/2025.

 

Quando Gregor Samsa abre os olhos e encontra um corpo que já não reconhece, o leitor é apresentado ao personagem central da obra A Metamorfose, de Franz Kafka. Não se trata apenas de uma cena inusitada em um romance do início do século 20, mas de uma imagem literária que dialoga com situações comuns da vida. Há dias em que nada ao redor parece ter mudado, e ainda assim percebemos que algo em nós já não é o mesmo. A transformação do personagem evidencia momentos em que a rotina é interrompida sem aviso, criando a sensação de deslocamento e estranhamento diante do próprio destino.

A narrativa não se limita à ideia fantástica de um homem que se torna inseto. Ela aborda mudanças que nos afastam da imagem que construímos sobre quem somos. Crescer, perder, recomeçar e rever escolhas faz parte de processos silenciosos que acompanham a existência humana. Ao descobrir que sua importância para a família estava ligada ao trabalho, Gregor percebe que sua identidade havia sido reduzida à função que exercia. O romance chama atenção para o risco de medir o valor de alguém apenas pela produtividade, esquecendo que a vida não se resume ao desempenho.

A solidão do personagem não surge apenas da transformação física, mas da reação das pessoas ao seu redor. A porta fechada do quarto passa a representar o afastamento progressivo da família, que evita o contato e a convivência. A obra sugere que o isolamento mais difícil não é o físico, mas aquele que acontece quando ainda estamos presentes, porém deixamos de ser considerados parte do cotidiano. O medo do que é diferente e a dificuldade em lidar com fragilidades humanas transformam relações antes naturais em barreiras quase intransponíveis.

Quando Gregor perde a capacidade de trabalhar, toda a dinâmica familiar se altera. O cuidado inicial dá lugar à impaciência, e sua presença passa a ser vista como um incômodo. A narrativa mostra como relações baseadas apenas na utilidade estão sujeitas a rupturas rápidas. Kafka evidencia que vínculos sustentados por expectativas e obrigações podem se desfazer quando alguém já não corresponde ao papel esperado. A história convida o leitor a refletir sobre a importância da empatia em momentos de vulnerabilidade.

Nesse sentido, o que a literatura nos ensina sem dizer? A força da obra não está em explicar os motivos da transformação, mas em permitir que o leitor observe a vida sob outra perspectiva. Sem oferecer respostas diretas, o texto estimula a percepção de que toda mudança envolve algum grau de compreensão e de adaptação. Acompanhando o personagem, percebemos que nem sempre as transformações externas são visíveis, e que grande parte delas ocorre de maneira silenciosa, antes mesmo de serem reconhecidas pelos outros. A literatura, assim, amplia o olhar para aspectos que muitas vezes passam despercebidos no ritmo acelerado do cotidiano.

Ao concluir a leitura, não lembramos apenas da condição em que Gregor se encontra, mas das questões humanas que permanecem após sua trajetória. A obra reforça que ninguém está livre de mudanças inesperadas e que as relações se fortalecem quando atravessam períodos difíceis com cuidado e permanência. A Metamorfose continua atual porque apresenta perguntas que atravessam gerações. Em um tempo que valoriza apenas aquilo que permanece estável, a narrativa recorda que transformar-se faz parte da vida e que reconhecer a própria fragilidade pode ser um caminho para seguir adiante de forma mais consciente. Portanto, a literatura continua necessária porque nos devolve perguntas que não envelhecem. Em um mundo que valoriza apenas o que não quebra, Kafka nos lembra que a transformação é parte da existência e que reconhecer a nossa própria vulnerabilidade talvez seja a forma mais profunda de permanecer inteiro.

Kafka: imagem literária que dialoga com situações comuns da vida em “A Metamorfose”

* Lucas Andrade de Morais é professor, escritor, pesquisador e artista multidisciplinar.