Não existe sonho na terra da sobrevivência

7 de maio de 2024 Off Por Funes Patos

Não existe sonho na terra da sobrevivência Por Delzymar Dias.

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 26/04/2024.

 

As memórias escolares não ocorrem de forma linear e organizada. Estão ali, à espera de um gatilho que dispare em sua imaginação um cenário ou situação que você viveu. São memórias adormecidas que nos acompanham por toda a vida. Vez por outra, me pego lembrando de alguma coisa a partir de algo que vivencio, vejo, escuto ou leio. Por esses dias, saiu uma notícia de que 63% da riqueza do Brasil está nas mãos de 1% da população. Essa pesquisa da Oxfam me teletransportou para a Escola Estadual Egmar Longo Araújo de Melo, no conjunto habitacional Noé Trajano, aqui mesmo na cidade de Patos, Sertão da Paraíba, mais especificamente para uma aula de Português na antiga quarta série.

A degradação humana nos lixões inspirou versos do poema ‘O bicho’, de Manuel Bandeira

Folheando o livro didático, uma imagem chamou minha atenção para um poema de Manuel Bandeira. Eu tomei um choque e foi a primeira vez que a realidade bateu na minha cara de criança. Um poema, um simples poema me deixou extasiado e triste. Talvez esse também seja um dos papéis da escola. Rubem Alves já questionou uma vez em um de seus contos sobre a possibilidade de existir uma pedagogia da tristeza. Eis “O bicho”, de Manuel Bandeira:

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

O texto gera um impacto tão forte que até uma criança consegue entender um problema histórico e recorrente em nossa sociedade. A desigualdade é a própria morte. Existem indicadores que mostram que, em grandes cidades, a expectativa de vida de uma população muda de acordo com o bairro. Em São Paulo, no bairro Tiradentes (extremo leste), a média de vida é de 59 anos, já no Jardim Paulista (zona oeste), a expectativa é de 80 anos. A ilusão compartilhada nas redes sociais de influencers do mercado financeiro nos mostra que basta trabalhar bastante para que você vença, a realidade diz que todos os bilionários com menos de 30 anos listados no ranking dos mais ricos da
Forbes são herdeiros.

Desde sempre, a realidade que bate em nossas portas é bem diferente do discurso meritocrático que a internet amplifica. Em “A riqueza de poucos beneficia todos nós?”, Zygmunt Bauman apresenta um estudo de 1979, produzido pela Universidade de Carnegie, que demonstrou que o futuro de cada criança era amplamente determinado pelas suas circunstâncias sociais, pelo local geográfico de seu nascimento e o lugar de seus pais na sociedade, não apenas pelo seu esforço, talento ou dedicação.

Entre memórias escolares, desigualdades e um poema de Manuel Bandeira que provoca impactos, fica a necessidade de discussão sobre um novo jeito de sairmos desse abismo social que trava o nosso desenvolvimento social e educativo. Quem trabalha diariamente de forma exaustiva para garantir um mínimo existencial, dificilmente consegue enxergar um horizonte pleno de oportunidades. Nesse cenário de precisão e urgência de sobrevivência, não existe espaço para sonhos e quando os sonhos deixam de existir, tudo já morreu ao redor.