Bolshoi e as insanidades do autoritarismo

20 de novembro de 2023 Off Por funes

Bolshoi e as insanidades do autoritarismo  por Delzymar Dias.

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 17/11/2023.

As redes sociais deram voz aos profetas do revisionismo. Pessoas que buscam o engajamento na internet tendo como referência o estabelecimento de teses absurdas e sem nenhuma base jurídica ou histórica. Esse movimento vai muito além do terraplanismo e chegou com força nos espaços de debate, já que existe uma apelação sensacionalista que tenta puxar o leitor/telespectador para aquele tema. Nesse sentido, é comum achar nas redes sociais pessoas defendendo a inexistência do holocausto, a ineficácia da vacina ou a inexistência de uma ditadura no Brasil entre os anos de 1964 a 1985. Um grande jornal brasileiro que apoiou a repressão chegou a tratar o período de ditabranda.

Para resolver essa questão, nem precisa consultar manuais complexos de direito ou ciência política, basta consultar o dicionário e perceber que esse período possui todas as características de um sistema ditatorial, a exemplo da perseguição a opositores políticos, censura prévia, fechamento do Congresso Nacional, desaparecimentos forçados, prisões arbitrárias, fim do pluripartidarismo e diversas violações aos direitos humanos. Sendo assim, o Brasil não só viveu uma ditadura de duas décadas na segunda metade do século 20, como ainda precisa encarar os chamados entulhos autoritários que persistem.

Apresentaçãodo Bolshoi
de ‘Romeu e
Julieta’ (ao
lado), em 2010;
reprodução
de matéria da
censura na TV
de uma versão
do espetáculo em
1976 (abaixo),
no arquivo
do projeto
‘Memórias da
Ditadura’

Apresentação
do Bolshoi
de ‘Romeu e
Julieta’ (ao
lado), em 2010;
reprodução
de matéria da
censura na TV
de uma versão
do espetáculo em
1976 (abaixo),
no arquivo
do projeto
‘Memórias da
Ditadura’

 

A cultura foi um dos segmentos que mais sofreram durante esse regime de exceção. Diversos artistas foram perseguidos através da censura prévia, sendo que muitos chegaram a ser torturados e assassinados. As produções culturais necessitavam de uma autorização prévia da Divisão de Censura e Diversões Públicas da Polícia Federal, que chegou a proibir mais de sete mil composições sob a alegação de que essas obras poderiam violar aspectos morais ou éticos da sociedade.

O sambista Martinho da Vila recebeu um veto na letra ‘Segure tudo’, apenas por constar no texto a expressão “tal liberdade”. O agente censor da ditadura classificou o uso do termo como perigoso e recomendou a não gravação da música, que só ocorreu após o autor substituir o termo “tal liberdade” por “tal felicidade”. Já Caetano Veloso foi preso com base em um boato sobre supostamente ter cantado o Hino Nacional em ritmo de tropicália. Como embasamento, uma acusação sobre terrorismo cultural, termoque nunca existiu no universo jurídico, e outra acusação bizarra sobre o fato de sua música ser “desvirilizante”. Já Chico Buarque tinha grande parte de suas composições rejeitadas automaticamente, já que era uma figura de destaque no cenário cultural brasileiro. Para continuar trabalhando, precisou achar maneiras para que a censura não barrasse automaticamente suas letras. É assim que nasce o sambista e compositor do morro carioca, Julinho de Adelaide, pseudônimo que Chico passou a usar para assinar suas composições. Sucessos como ‘Acorda Amor’ e ‘Jorge Maravilha’ foram assinados neste contexto e até ser descoberto, deu até entrevista em combinação com o grande cronista Mário Prata.

Um dos casos icônicos da censura no Brasil ocorreu ao vivo, durante uma apresentação de Chico Buarque e Gilberto Gil. Durante o Festival Phono 73, em São Paulo, eles tentaram cantar a música ‘Cálice’, um dos grandes símbolos do movimento de contracultura que denunciava a violência do Estado através de uma letra que fazia analogias fortíssimas com o momento histórico vivido pelo Brasil. A dupla teve o som de seus microfones cortados durante a apresentação.

Essa foi apenas uma das insanidades que a estrutura do aparato governamental provocou durante a ditadura. Com o avanço da televisão no país, o departamento de censura do governo chegou a proibir a exibição da peça Romeu e Julieta, do poeta e dramaturgo William Shakespeare, que foi transformada em espetáculo pelo Balé Bolshoi e que seria transmitida no Brasil, em 1976. O argumento utilizado era tão ridículo quanto o sistema vigente, já que a tese era de uma possível leitura comunista da obra de Shakespeare.