Duas histórias sobre o amor
8 de novembro de 2024Duas histórias sobre o amor Por Lúcia Costa.
Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 01/11/2024.
O amor manda cartas
Um entregador dos Correios chega à casa de Maria, às nove da manhã. Ela está tomando café e se assusta com uma correspondência tão cedo. Recebe o rapaz que lhe entrega uma carta em um envelope perfumado. Ela agradece, fecha a porta e rasga a carta enquanto termina sua caneca de café. No envelope, não há um remetente, só seu nome enquanto destinatária da mensagem. Em uma letra quase que desenhada, dispõem-se as seguintes palavras:
“Querida Maria, meu amor por ti é um continente onde não há miséria e todas as pessoas se cumprimentam ao amanhecer e ajudam umas as outras a manter suas próprias vidas.
Caso deixes, serei a fenda da tua janela por onde o amor te acordará todas as manhãs, jogando um facho de luz sobre teus olhos. Unidos, seremos a igualdade de uma existência individual desigual. Juntos, poderemos abrir as janelas do mundo, sem que seja preciso fechar nenhuma porta. Caminharemos sempre de mãos dadas até que nossos pés se cansem e abandonem o mundo físico.
Quero participar de cada passo teu, de cada gesto e da tua insônia, caso a tenhas. Quero viver tua saúde e cuidar da tua doença. Quero provar do teu doce e comer do teu sal.
Case-se comigo, Maria. Quero-te já, quero-te ontem. Nasci para conhecer a luz dos teus olhos, nem que depois eu cegue. Amo-te como um faminto em busca de pão. Desejo-te; és minha respiração”.
Maria se encanta pelas palavras, toca-as, cheira-as. Está inebriada pela declaração, mas não tem como mandar respostas, pois o remetente não lhe enviou nome e endereço.
E, quase todos os dias, ela recebia cartas com o mesmo teor, atiçando ainda mais sua curiosidade. Uma manhã, ela olha bem o moço que entrega as correspondências. Ele ri para ele e em sua testa está escrito “Me chamo Daniel, moro na Rua da Paixão, bairro dos apaixonados”. Ela o abraça e sente que já o ama. Daniel continua entregandolhe as cartas todos os dias, mas, agora, espera que a moça abra e leia enquanto tomam café da manhã entre abraços duradouros e beijos ardentes.
Hoje, domingo, cinco meses depois da primeira carta, Maria e Daniel casam- -se na Igreja Matriz e mudam-se, apaixonados, para a Rua dos Apaixonados.
Mãe, um conto para quem não
tem preguiça de pensar
Ainda na infância, aqueles amigos umbilicais descobriram-se apaixonados. Juraram-se, acreditaram-se, o relógio adiantou ponteiros, anelaram-se, casaram-se.
Os anos passaram apressados: o desejo queimou o primeiro; a sede bebeu o segundo; a fome comeu o terceiro. Quatro anos e as bocas frias ruminavam; os corpos gritavam em silêncio pelo pequeno corpo que não lhes chegava. À parteira, menos uma luz para mostrar; ao padre, uma falta na pia batismal no domingo; ao mundo, uma ideia negada; ao casal, uma chupeta e dois pesinhos para medir os limites da casa.
Não queriam adquirir choro que não lhe fosse proveniente dos próprios olhos. Acreditavam que, com isso, teriam de se acostumar à vereda que o pequeno desconhecido traria desenhada. Todos os planos davam para um filho; todos os meses davam para o fracasso.
Uma noite, enquanto viam TV na sala, escutaram um choro primário vindo do jardim. Sufocado entre flores e espinhos, formigas e grama úmida, chegou a casa aquele minúsculo ser de olhos ainda fechados.
Romance
Maria se encanta pelas
palavras, toca-as,
cheira-as. Está inebriada
pela declaração, mas
não tem como mandar
respostas, pois o
remetente não lhe
enviou nome e endereço
E por ali descobriu para que servem os pés, subiu as escadas, dormiu sozinho, espremeu a primeira espinha, dormiu junto a uma estranha sorrateira, desceu para ser calouro, subiu com o diploma, beijou os pais, partiu para longe, encontrou o útero que lhe fermentou, libertou-o da prisão, ofereceu-lhe casa, chama-o carinhosamente de “mãe”.
Longe dali, um par de cabelos brancos, ainda de luto, lamenta o que poderia ter sido, e foi.