Eles ainda estão aqui
2 de dezembro de 2024Eles ainda estão aqui Por Delzymar Dias.
Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 29/11/2024.
Fui ao cinema e fiquei impactado com o filme Ainda Estou Aqui. O longa é uma adaptação do livro com o mesmo título escrito por Marcelo Rubens Paiva, que viu sua família ser impactada e devastada com o desaparecimento forçado do seu pai, o ex-deputado Rubens Paiva, assassinado pelos militares durante a Ditadura que vigorou no Brasil entre os anos de 1964 e 1985. Tanto o livro quanto o filme buscam fugir do lugar-comum onde as histórias sobre a Ditadura se encontram, fornecendo protagonismo a Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, conhecida como Eunice Paiva, companheira de Rubens Paiva.
A história traz coisas absurdas que não podem ser toleradas, independentemente de suas convicções políticas ou pessoais. Não podemos naturalizar um sistema onde pessoas são arrancadas de suas casas sem que haja o devido processo legal e sejam submetidas a diversas sessões de torturas a ponto de morrerem nas mãos de agentes do Estado, que, achando pouco o tamanho da barbárie, resolvem sumir com corpo, forjar provas e manipular processos para passar uma impressão de legalidade. Rubens Paiva foi assassinado pelos militares que também prenderam sua esposa, Eunice, e sua filha Eliana.
Eliana Paiva, uma adolescente de 15 anos de idade, foi presa, encapuzada e levada aos porões do DOI-Codi, no Rio de Janeiro, em 1971. Vivenciou momentos de tensões e de abusos. Militares homens a revistaram sem nenhum pudor e a
mantiveram encapuzada em um corredor, o que fez com que outras pessoas que passavam pelo local também a agredissem com xingamentos e toques em seus seios.
As reações ao filme Ainda Estou Aqui e as recentes descobertas sobre a tentativa de um novo golpe de Estado no Brasil mostram a necessidade de retomar a discussão sobre um tema que achávamos que tinha ficado nas páginas infelizes da nossa história, como cantou Chico Buarque. Escrevi o meu trabalho de conclusão de curso para tornar-me historiador em 2007, e toda a minha pesquisa foi sobre esse período nefasto da história; porém, lá em 2007, esse tema
era tratado assim, como história. Não esperava voltar a escrever sobre esse tema como algo real e muito menos ler prints de conversas sobre tramas de generais que buscavam abolir o Estado de Direito, assim como ocorreu em 1964.
Em “Pequena memória para um tempo sem memória”, Gonzaguinha canta em uma referência clara ao desaparecimento forçado de pessoas que foram assassinadas no período, dizendo que “são cruzes sem nomes, sem corpos, sem datas”. O corpo do Rubens nunca foi achado, assim como o corpo do jovem atleta do Flamengo Stuart Angel e outras centenas de pessoas torturadas e assassinadas. O reconhecimento do Estado brasileiro sobre o assassinato de Rubens Paiva só ocorreu em 29 de janeiro de 1996, quando Eunice Paiva, depois de 25 anos de lutas, recebeu a certidão de óbito do marido que ela nunca conseguiu sepultar.
O filme provoca um sentimento de angústia que vai aumentando com o olhar de despedida de Rubens e Eunice na porta de casa, com as dificuldades financeiras enfrentadas com a prisão do marido e com a força encontrada por Eunice para manter a família viva e alegre, apesar das tragédias.
Como disse no início, o título do filme é uma referência ao livro de Marcelo Rubens Paiva, que passou a perceber que sua mãe estava perdendo a memória por conta da doença de Alzheimer, ao mesmo tempo em que começaram a surgir muitas notícias, a partir de 2014, sobre o assassinato do seu pai pela Ditadura. Foi exatamente nessa fase onde figuras públicas desprezíveis passaram a não ter vergonha ou pudor em pedir a abolição do Estado Democrático de Direito. Ao escrever sobre essas memórias familiares, Marcelo Rubens Paiva não apenas promove um debate, mas provoca um grito necessário de alerta em tempos de extremismos desmedidos e desregulamentação das redes sociais. Assim como milhares de vítimas e familiares desse período ainda estão aqui lutando pelo direito à memória, aqueles que defendem a arbitrariedade também ainda estão aqui. Infelizmente, não conseguimos virar essa página.