À Francisca

25 de outubro de 2023 Off Por funes

À Francisca por Renato César Carneiro.

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 20/10/2023.

O homem é lobo do homem, em guerra de todos contra todos.
(Thomas Hobbes)

No mês passado, fomos surpreendidos com uma notícia vinda de Patos, minha terra natal: um casal foi preso por torturar os próprios filhos, dois bebês gêmeos, com água fervendo e chapinha. A Justiça decretou a prisão preventiva de ambos. E o casal está preso.

Escultura de Francisca, no Parque Religioso Cruz da Menina, em Patos (PB)

Escultura de Francisca, no Parque Religioso Cruz da Menina, em Patos (PB)

A notícia é chocante, mas não mais me surpreende. A história apenas se repete, mudando apenas os personagens e os detalhes do crime, isto porque, enquanto o fato era manchete em praticamente todos os portais do estado, eu terminava de escrever o livro sobre o processo judicial que apurou a morte da menina Francisca. Relembremos o caso:

Na manhã de 13 de outubro de 1923, o corpo de uma criança, já em estado de putrefação, foi encontrado entre as pedras, no sítio Trapiá, na mesma cidade de Patos. Um bando de urubus que sobrevoavam o corpo chamou a atenção de um agricultor, que noticiou o fato ao delegado.

Apesar do estado em que se encontrava, o corpo foi identificado como o da menina Francisca, uma filha de retirantes da seca, que houvera sido “doada” pelos pais ao casal Absalão e Domila Emerenciano. Com o gesto, os pais naturais da menina queriam que ela tivesse um futuro melhor.

Ledo engano! A madrasta a tratava como uma escravizada, sem direito a brincar como as outras crianças e Francisca era espancada constantemente. Certo dia, a violência foi ao extremo, causando-lhe a morte.

Para se livrar do corpo, o casal transportou-o até a saída da cidade, onde o corpo foi encontrado dois dias depois do crime.

O delegado responsável pelo inquérito policial agiu com destemor, apesar das pressões que sofreu para não indiciar o casal. Absalão, marido de Domila, era o responsável pelo serviço de luz e tinha a proteção do chefe político local, e até de pessoas da capital, que tinham influência sobre o juiz e o promotor. Resultado: o inquérito policial ficou parado por quase dez anos e a cidade de Patos experimentou as trevas da impunidade. Os acusados só vieram a ser presos antes de ser julgado pelo Tribunal do Júri, que absolveu o casal três vezes. Absalão e Domila foram soltos.

No livro O crime da Rua da Pedra – realidade e ficção na história de um processo judicial em Patos-PB, rememoro o momentoso processo judicial e as forças políticas que atuaram nos bastidores. Como contribuição à história desse caso judicial, trago como novidades o habeas corpus em favor dos réus que tentou anular o processo, o pedido de desaforamento para outra cidade e o misticismo que tomou conta do julgamento.

A diferença entre os dois casos ocorridos em Patos – o de 1923, da menina Francisca, e o de 2023, dos gêmeos torturados nos tempos atuais? A impunidade!

Crianças são assassinadas e torturadas todos os dias! Numa guerra, as primeiras vítimas são elas, além das mulheres e dos anciãos. E, parodiando Hobbes, a vida é uma guerra permanente, “de todos contra todos”.

Crianças, assim como as mulheres, continuaram sendo assassinadas e torturadas. Mas, o que nos marca como uma sociedade civilizada? A efetiva aplicação da Lei, sem seletividade! Sem isso, nos restará, apenas, o caos!