‘AmarElo – É tudo pra ontem’

22 de março de 2022 Off Por funes

AmarElo – É tudo pra ontem” por Delzymar Dias.

 

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data  de 05/03/2021 .

 

  AmarElo é uma das coisas mais sensacionais que ouvi e vi nos últimos tempos. Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, se tornou essencial no cenário histórico e cultural da atualidade. Poeta brasileiro, músico, escritor, produtor e alguém que consegue encaixar suas falas e narrativas através de canções que provocam impactos não apenas auditivos.

  Lançou recentemente um álbum e um documentário impossível de descrever completamente a partir de uma fala generalista. É um tratado universal contra todas as formas de preconceito que, através da música, leva o espectador de volta à escola.

 AmarElo – É tudo pra ontem, parte de uma experiência pessoal do cantor que, como narrador principal, conduz a pessoa que está vendo e escutando a um trajeto que passa pela história, pelo direito, pela educação, pela literatura, pela arte e pela difusão da cultura afro-brasileira desde os primórdios do samba, passando pela lei da vadiagem que perseguiu negros sambistas e capoeiristas, até chegar na contextualização atual do chamado racismo estrutural.

  Emicida mostra, através da música e da perseguição a cultura afro no Brasil, que ainda precisamos evoluir muito para erradicar as mazelas provocadas pela abolição tardia e ausência de políticas públicas de integração. Esses são os dois principais problemas que muitas vezes não conseguimos traduzir, didaticamente, através dos livros didáticos e das aulas de História.

Essa abolição tardia aliada a marginalização da população negra e a tentativa de apagar ou desconfigurar a história da escravidão no Brasil, mostra que ainda precisamos avançar muito para alcançarmos a cidadania plena, tão alardeada em nossa constituição e também na legislação educacional. Apesar dos avanços provocados pela lei 10.639/2003, que inclui, no currículo oficial, a obrigatoriedade do estudo referente a história e a cultura afro-brasileira nas escolas, convivemos ainda com um programa engessado que, muitas vezes, impede que haja um amplo debate sobre o tema.

Diferentemente daquilo que muitos acham, o professor não possui liberdade plena para montar as aulas de acordo com a necessidade pedagógica de cada conteúdo, já que precisa, em um tempo mínimo, montar seu planejamento seguindo as diretrizes apontadas pelo sistema de ensino adotado, que, muitas vezes, estabelece uma aula de 45 minutos para que você aborde toda a narrativa histórica, jurídica e sociológica de um tema tão complexo e amplo como é a escravidão, suas origens, seus efeitos e seu triste legado.

Mesmo com tantas evidencias atuais, mesmo com a continuidade do processo histórico de gentrificação em curso, mesmo o Brasil tendo sido o último país do continente americano a acabar com a escravidão, vivemos uma espécie de amnésia nacional sobre seus efeitos que, para muitos, não passa de vitimismo. A negação da realidade histórica e do racismo não impede que tenhamos uma “pele alvo”, atingida diariamente por balas perdidas, sufocamentos propositais em supermercados, insultos e injúrias. Esse tema, presente na releitura de Ismália, do poeta Alphonsus de Guimarães, é uma das coisas mais lindas, fortes e representativas já produzidas na música brasileira. Emicida ressignifica e unifica lutas que até então pareciam separadas pelo identitarismo e coloca a luta do povo negro em total sintonia com as outras lutas dos outros grupos que sofrem com o preconceito e a discriminação.

A justificativa é óbvia: não faz sentido lutar por meia liberdade. Nesse contexto, traz à tona temas como a perseguição e o preconceito aos homossexuais e transexuais como parte de um processo que possui a mesma origem de intolerância. Belchior e o seu “sujeito de sorte” veio para o rap. Não foi o único. Emicida também colocou na jogada Fernanda Montenegro, Zeca Pagodinho, Wilson das Neves, Gilberto Gil, Pablo Vittar, Caetano Veloso e vários outros personagens da nossa cultura, mostrando as raízes históricas do samba e suas ligações com outros estilos, formando o que ele chama de “Neosamba”.

Até a Semana de Arte Moderna de 1922 entrou no embalo. O título do documentário faz parte da própria essência do trabalho de Emicida, já que ele não relaciona sua trajetória musical apenas a uma carreira, mas a uma causa constante. É tudo pra ontem porque só hoje conseguiremos não repetir os erros do passado. É tudo pra ontem porque a escravidão nunca deveria ter sido normatizada. É tudo pra ontem porque precisamos reconhecer o racismo estrutural existente em nossa sociedade.

É tudo pra ontem porque não podemos mais admitir que Ágatas, Marielles, Margaridas, Emilys, Rebecas, Dandaras, João Albertos, e tantas e tantos outros tenham a sua vida interrompida por violências de naturezas diferentes, mas que possuem um tronco anticivilizatório comum. Apesar de recitar e cantar a violência urbana e estrutural que cerca os grupos mais vulneráveis, existe uma mensagem muito forte de fé e esperança em AmarElo, traduzida em cada verso simbólico que muitas vezes aparece nas entrelinhas de mensagens mais fortes. É tudo pra ontem.

Delzymar Dias