O boto de água doce – parte 2

14 de agosto de 2023 Off Por funes

O boto de água doce – parte 2 por Carlos Ferreira da Silva.

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 11/08/2023.

Um pouco mais à frente, era a cidade de Malta, lá também mamãe teria histórias para contar, dos forrós que ia e da política regada a cachaça e muito churrasco, velhos tempos que não voltam mais, replicou. Para minha surpresa, o velho carro saiu da BR-230 e entrou na pequena cidade, tinha que deixar passageiros e olhar de um lado para outro se tinha novos clientes, assim se fez, ao avistar a igreja, dedicada a Nossa Senhora da Conceição, novamente o sinal do cristão e agora uma breve história das missas ali e das puxadas de orelha do padre Acácio, quando uma mulher teimava em participar do santo sacrifício de calça ou blusa de alça.

Açude Engenheiro Arcoverde, no município de Condado, Alto Sertão da Paraíba: “Nas águas profundas do manancial mora o boto de água doce”

Açude Engenheiro Arcoverde, no município de Condado, Alto Sertão da Paraíba: “Nas águas profundas do manancial mora o boto de água doce”

Convenhamos, vivíamos ainda na época do respeito e da moral, dos bons costumes ou como ouvira certa vez, o tempo do “ronca”, expressão que ainda me extrai gargalhadas. Continuamos a viagem, e minha mãe tratou de nos lembrar que a próxima parada já seria nosso destino, deu nem tempo cochilar e sinto as mãos fortes me puxando: chegamos, cuida menino, pega a mão do teu irmão que é menor. Descemos da Veraneio e começamos uma via sacra, sim quase isto, porque era tanta ladeira, sobe e desce que mais parecia uma romaria, lembro de termos caminhado a pé, no sol tostando por quase quatro quilômetros até chegarmos à beira do açude, onde o enredo principal vai se desencadear.

A casa dos familiares maternos de minha mãe ficava na outra margem do açude de modo que precisaríamos transpor até lá, como isto se daria? Nadar, ninguém sabia, exceto minha mãe que segundo ela seria uma verdadeira piaba. Avistamos um transporte. Não era uma lancha, um barco e sim, uma velha canoa, que para nossa surpresa era guiada por um menino franzino, sem graça e de voz fraca. Era a única solução. Combinamos então que seriam duas viagens.

Fui sorteado para ir na primeira leva, aos conselhos de minha mãe que dizia: “Não balance, fique quieto ou eu arranco sua orelha”, não podia negar um pedido tão gentil dela, fui quase que mumificado, o vento passava e eu sequer olhava para ele de tão amedrontado. Foi exatamente neste momento que o boto de água doce nasceu. Fração de segundos, tranquei os olhos e imaginei, um grande peixe, sem escamas, com pele amarronzada, olhos esbugalhados e dentes redondos, pulo para dentro da velha canoa, e seu rabo era tão pesado que criou uma onda no açude, por pouco não naufraguei.

Por sorte, apenas eu vi o grande peixe, talvez minha meninice e a imaginação fértil haverá me dado tal graça, os outros ocupantes da embarcação nem perceberam o boto ali, entre nós, ele era só meu, todo meu e de meus pensamentos, de minha criatividade, de minha realidade ficcional e palpável, novela ou série da Sertãoflix.

As braçadas do menino barqueiro foram acertadas, nos levaram à outra margem do açude, aportamos no Sítio Timbaúba, terra de meus antepassados, ancestrais ou simplesmente familiares maternos de minha genitora. Sim, antes que esqueça, a segunda carrada de gente também foi transportada. E, como se não bastasse todas as novidades, lembro do abraço fraternal de minha mãe na sua prima Lourdes, que logo indagou quem havia nos trazido da margem até cá, foi um menino retrucou mamãe, e sua prima completou: “Graças a Deus, porque semana passada este mesmo menino virou a canoa”.

Nesta hora, a alma de minha mãe saiu do corpo, o medo e o pavor se apoderaram e ela disse em tom sarcástico: “Ainda bem que você me avisou”, daí seguimos para a cozinha tomar água, fazer download novamente da alma ao corpo e tomar um café pisado no pilão com pão de milho, batata doce e jerimum.

Daquele momento para frente ninguém tira de minha cabeça que o verdadeiro motorista ou guia da velha canoa não foi o menino, mas o boto que pegou nos remos e nos levou são e salvos para nossa aventura.

Toda vez que passo, na estrada de Condado e olho para o Açude Engenheiro Arcoverde, me vem a memória que ali nas águas profundas do manancial mora o boto de água doce, não qualquer um, antes o meu boto de água doce, e sou capaz de enxergar ao longe suas barbatanas acenando para mim.