O mundo acabou

O mundo acabou

24 de março de 2022 Off Por funes

O mundo acabou por Delzymar Dias.

 

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 18/02/2022.

 

Aquela imagem nunca saiu da minha cabeça. Uma criança de camisa vermelha, short azul e um sapato escuro. Estava em meu horário de almoço quando vi a cena. Alan Kurdi, o garoto sírio de 3 anos que morreu afogado na praia de Ali Hoca, em Bodrum, na Turquia. Sua família estava em um bote e tentavam chegar a Grécia. O irmão e a mãe de Alan também morreram na travessia. Aquela imagem, aquele pequeno corpo, aquela criança se foi sem ter a mínima noção dos problemas políticos, econômicos e culturais que motivaram a sua família a fazer uma travessia tão perigosa.

 Ainda me restavam oito aulas a serem ministradas naquele dia. Não consegui prosseguir. Chorei enquanto me arrumava para o turno seguinte. A cena me derrubou de um jeito difícil de explicar. A única aula possível naquele momento teria como temática a tristeza. Lembrei de um texto do educador Rubem Alves no qual ele aborda se seria possível uma pedagogia da tristeza. Questionava ele: “A compaixão é triste? Ensinar compaixão será ensinar a tristeza? Tristeza será coisa que se ensine? Haverá uma pedagogia da tristeza? Estranho pensar que um professor, ao iniciar o seu dia, possa dizer para si mesmo: Hoje vou ensinar tristeza aos meus alunos…”.

O fato de Francisco, meu filho, ter a mesma idade daquele garoto, certamente contribuiu para a aflição e a tristeza com a cena. Pensava em ambos. Naquele 2 de setembro de 2015, imaginei que haveria uma grande força tarefa internacional para tentar resolver os problemas que envolviam migrações, imigrações e guerras civis.

Nada disso aconteceu e o que percebi foi o esquecimento daquele episódio que só voltava a mídia e a lembrança das pessoas quando outras crianças morriam exatamente do mesmo modo, do mesmo jeito, da mesma forma. Sim, centenas de outras crianças morreram depois daquele 2 de setembro, exatamente do mesmo modo, do mesmo jeito, da mesma forma. A internet possui um ritmo próprio e mesmo com aquelas imagens chocantes circulando em todo o mundo, não chegamos nem perto de sensibilizar os grandes líderes que continuam normatizando essa barbárie.

O mundo também acabou em 20 de setembro de 2019, quando outra criança, a menina Ágatha Félix, tomou um tiro de fuzil nas costas enquanto voltava para a casa com a mãe, no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro. Todo o enredo da história é revoltante. Um agente atira contra dois homens que estavam em uma moto e o tiro acaba acertando a criança.

O motivo do disparo? O policial confundiu uma esquadria de janela que o garupa da moto transportava com um fuzil. Sobre esse caso, o escritor Valter Hugo Mãe escreveu, em sua rede social: “Querida Agatha Félix, meus estudos, meus livros, minha sensibilidade, todos os meus sonhos de melhorar o mundo, todas as pessoas que amei e que cuidei, foram inúteis para você. Nada do que sou, do que fiz e do que disse foi bastante para impedir que te proibissem de viver. Sua cor segue sendo proibida, seu gênero segue sendo proibido, agora sua idade é proibida também. Lamento muito, falhamos todos. Somos cidadãos e cidadãs de um tempo novamente miserável”.

Um caso isolado? Não. Apenas nos últimos cinco anos, mais de 100 crianças foram baleadas no Rio de Janeiro. Ágatha, Rafael, Endryw, Ana Clara, Alice, Kaio e tantas outras. Nossa comoção é rápida, nosso lamento passageiro e nossa memória é bem curta, já que o mundo também acabou no dia 18 de maio de 2020, quando o jovem João Pedro Matos Pinto, de apenas 14 anos, foi assassinado com um tiro na barriga após uma operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. Estava brincando com os primos na hora que a residência foi invadida. Depois disso, a família não sabia para onde os agentes tinham levado o jovem que, já sem vida, só teve o corpo encontrado posteriormente no Instituto Médico Legal.

O mundo também acabou em 20 de abril de 1997, em Brasília (DF), quando cinco adolescentes atearam fogo no cacique do povo pataxó, Galdino Jesus dos Santos. O enredo desse brutal assassinato é composto por uma série de elementos históricos e culturais que, infelizmente, fazem parte da nossa construção social: a desumanização dos marginalizados e a simbologia trágica de um indígena assassinado um dia após as comemorações do Dia Nacional do Índio. De acordo com o processo, os jovens queriam fazer uma “brincadeira selvagem” e tentaram se defender dizendo que achavam que aquela pessoa deitada no banco era um mendigo, como se isso fosse um argumento justo para o cometimento de um ato tão brutal. Galdino Jesus dos Santos saiu do sul da Bahia na véspera daquele 19 de abril. Era o representante do povo Pataxó na defesa dos direitos indígenas do seu povo. Esse caso teve uma ampla repercussão internacional.

Virou poesia, música, filmes e documentários. Aprendemos? Não. Tivemos recentemente, segundo o relatório anual Violência contra os Povos Indígenas, um aumento de 150% da violência contra essa população e todos os dias esse número aumenta. Os indígenas estão em situação de tensão, fugas e invasões patrocinadas por grileiros e invasores que não respeitam as terras demarcadas. Ailton Krenak, líder indígena, ambientalista e filósofo, disse em uma entrevista aquilo que resume a tragédia da conquista para os povos originários, ao afirmar que “a história de colonização do Brasil é uma marcha sobre os territórios indígenas e a edificação sobre cemitérios indígenas. E é uma tristeza você imaginar uma nação construída em cima do cemitério da outra”. O mundo acabou às vésperas do Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, quando a mulher trans, Roberta dos Santos, que vivia em situação de rua, teve 40% do seu corpo queimado enquanto dormia no cais de Santa Rita (Recife). Depois de vários dias de sofrimento e dois braços amputados, Roberta faleceu no Hospital da Restauração. Já o popular Stive Daves Alves dos Santos, morreu em 6 de julho de 2021, na cidade de Goiânia, após sofrer queimaduras quando tentava cozinhar utilizando álcool, já que não possuía condições financeiras para comprar um botijão de gás.

Naturalizamos o fato de que famílias não conseguem ter o básico e morrem por não ter o mínimo para a sobrevivência. Enquanto escrevia este texto, foi noticiado o assassinato do congolês Moïse Kabagambe, que morreu depois de ser atacado por ter cobrado seu pagamento em um quiosque na Barra da Tijuca. Não deu tempo processar a informação, outro jovem negro foi assassinado enquanto vendia balas em um sinal. Era Hiago Macedo de Oliveira Bastos, de apenas 22 anos. Vinha se dedicando a juntar dinheiro para o aniversário da filha e acabou sendo confundido com um assaltante. Os dois foram assassinados sem chance de defesa. O mundo acaba todas as vezes que nos deparamos com uma grande tragédia e normatizamos a barbárie como algo comum. A gente se acostuma sem poder se acostumar. Este é o tipo de texto, que, infelizmente, não termina com um ponto final.