O sagrado e a tragédia: cultura, religiosidade e história

O sagrado e a tragédia: cultura, religiosidade e história

22 de março de 2022 Off Por funes

O sagrado e a tragédia: cultura, religiosidade e história por Prof. Delzymar Dias

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 11/06/2021 .

 

As diversas manifestações religiosas e a própria ideia do sagrado estão vinculadas a uma estrutura histórica de formação da nossa sociedade. Para além do tradicionalismo dogmático daquilo que a oficialidade das religiões nos propõe, as crenças que nascem nas pequenas localidades estão ligadas, em grande parte, a superação de problemas e fenômenos locais ou as questões de saúde e doença que atormentam as pessoas. Assim, surgem crenças, ritos, conceitos e histórias que se consolidam, a margem do dogma, juntando elementos informais e populares que potencializam a fé das pessoas.

 Muitas vezes, essas histórias possuem um tema ou um personagem que transita entre essas narrativas, com mudanças pontuais ou significativasem relação ao local e ao contexto histórico dos relatos. Quem mora na cidade de Patos, Sertão da Paraíba, certamente conhece a história da Cruz da Menina. Uma tragédia provocada por um crime bárbaro é o ponto central da história que deu origem ao Parque Religioso.

Em outubro de 1923 foram encontrados os restos mortais de uma criança chamada Francisca, assassinada dias antes em um caso que marcou a história do município. No local, uma cruz era colocada para lembrar o fato, despertando nas pessoas que ali passavam um sentimento de fé e oração. O agricultor José Justino do Nascimento, motivado por uma grande seca que assolava a região, resolve fazer uma promessa de construir uma capela em homenagem a menina, caso fosse encontrado água na região, fato que ocorreu poucos dias depois, fazendo com que o mesmo cumprisse a promessa e construísse a capela no ano de 1929.

Milhares de pessoas vindas de todos os cantos do Brasil visitam o local todos os anos, sendo transformado em Parque Religioso em outubro de 1993, com uma grande estrutura para receber os romeiros. Em Pombal, também no Sertão da Paraíba, outra história trágica deu origem a uma Cruz da Menina.

Durante a seca de 1877, uma das maiores já registradas na região, um crime bárbaro gerou repercussão em todo o estado. Uma criança de nome Maria é assassinada e partes do seu corpo são usadas como alimento por Donária dos Anjos, uma mulher de 18 anos que alegou ter atraído e matado a menina para saciar a sua fome, em momento de grande aflição. Esse episódio trágico foi citado por grandes nomes da literatura, como o escritor José Américo de Almeida e os poetas Nicandro da Costa e Bernardo Nogueira. O contexto histórico do assassinato da menina é a fome provocada pela seca. A partir disso, surge o fenômeno religioso em torno da sua morte. No local onde a menina morreu, foi colocado uma cruz de madeira, onde populares começaram a se reunir para fazer pedidos e orações.

 Quando as chuvas chegaram em um momento de grande aflição, as pessoas atribuíram a criança, vítima daquele crime cruel, a intercessão para aquela graça. O local até hoje é visitado por romeiros e pessoas de fé. A antiga cadeia onde Donária dos Anjos ficou presa vários anos, hoje abriga a Casa da Cultura. Cruz da Menina também é o nome dado a uma comunidade localizada na cidade de Dona Inês, na região do Curimataú paraibano. No local, uma cruz e uma pequena capela fazem referência a outra história trágica que também envolve uma criança.

Em uma das diversas secas que assolaram o Nordeste brasileiro, uma família de retirantes chega até a localidade carregando uma criança nos braços. Famintos, pedem comida a um dos grandes proprietários rurais da região, que se nega a ajudar a família. A menina Dulce, fragilizada, com fome e sede, não resiste e acaba morrendo. No local que a menina faleceu, surge um olho d´água, uma fonte que será relacionada a um milagre feito pela menina Dulce. Centenas de pessoas visitam a região para fazer seus pedidos e orações em lembrança a menina.

As migrações e imigrações forçadas que se misturam em histórias de tragédias, dores e legados, fazem parte do tecido social de diversas regiões nordestinas. Nesse caso específico, é a junção de elementos como seca, fome e o legado vivo dos descendentes de africanos que foram escravizados na região, que formam a identidade da comunidade quilombola chamada Cruz da Menina. Três crianças, três meninas.

] As histórias construídas e narradas em torno das tragédias que ceifaram as vidas de Francisca, Dulce e Maria, fazem parte de um enredo típico dos anos de seca. Toda a narrativa religiosa desses casos nasce a partir da escassez de água e de comida na região. Temos aqui uma grande oportunidade pedagógica de trabalhar com aspectos educativos relacionados a cultura, memória, religiosidade e patrimônio local.

Essas e outras histórias e narrativas precisam chegar até as pessoas, fazendo com que haja uma compreensão da diversidade de manifestações que envolvem a cultura religiosa do seu povo e da sua região, construído a partir de características históricas, culturais e geográficas próprias do seu lugar.