Superação da cultura do silêncio: 100 anos de Paulo Freire

22 de março de 2022 Off Por funes

Superação da cultura do silêncio: 100 anos de Paulo Freire por Prof. Delzymar Dias

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 18/06/2021 .

 

A História do Brasil, da maneira que é contada através do tradicionalismo didático, começa com um imenso silenciamento cultural. Os nativos que habitavam essa terra foram surpreendidos por um grupo de pessoas que tinham por objetivo explorar economicamente o território e provocar uma imposição cultural dos seus próprios costumes.

 Entre outras barbaridades, houve uma grande desagregação do sistema produtivo, a implantação do trabalho compulsório e a tentativa de silenciar a língua predominante entre os nativos, o tupi, proibido de ser usado e ensinado no território a partir de 1758, através de uma determinação do Marquês de Pombal.

Com a chegada dos Africanos que foram escravizados, essa cultura do silenciamento foi ampliada e essas pessoas proibidas de exercer sua religiosidade, seus costumes, sua língua, seus cantos e seus jeitos.

Mesmo depois da abolição tardia, continuaram em processo de desumanização, sendo impedidos de terem acesso à educação, trabalho digno ou qualquer tipo de inserção cidadã nos círculos sociais entre o final do império e a primeira metade do século 20. Entender e superar essa característica histórica do silenciamento cultural de diversos grupos sociais ao longo da história, talvez tenha sido o grande desafio da práxis (ação concreta) freireana.

No ano em que o educador pernambucano completaria 100 anos, sua obra traz constatações, relatos, estudos e experiências sobre a necessidade de romper com esse silenciamento cultural, provocado por diversos fatores, entre eles, a naturalização do analfabetismo no império e, no início da república, as limitações e exclusões provocadas pelo voto censitário, a ausência de políticas públicas educacionais efetivas e a censura imposta durante as ditaduras e períodos autoritários que o Brasil enfrentou.

 É importante ressaltar que o conceito de cultura é amplo e diverso, podendo ser vinculado a uma ideia mais geral, aos aspectos amplos de uma determinada realidade social ou ser ligado aos conhecimentos, crenças, ideias, formas e vivências dos grupos sociais. Em todos os conceitos, é imprescindível o reconhecimento daquilo que é produzido pelos indivíduos.

 No livro Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos, Freire fala sobre a importância da educação no contexto cultural, “qualquer que seja o nível em que se dê, se fará tão mais verdadeira quanto mais estimule o desenvolvimento desta necessidade radical dos seres humanos, a de sua expressividade. (…)O aprendizado da leitura e da escrita, por isso mesmo, não terá significado real se se faz através da repetição puramente mecânica de sílabas. Este aprendizado só é válido quando, simultaneamente com o domínio do mecanismo da formação vocabular, o educando vai percebendo o profundo sentido da linguagem”.

Paulo Freire entende que todas as pessoas possuem algum tipo de conhecimento, contrapondo a ideia de que determinados grupos sociais não alfabetizados estariam impedidos de produzir cultura. Essa ideia traz a possibilidade para que todos tenham o direito de aprender, assimilar, compreender, produzir e expressar seus conhecimentos através de suas próprias experiências e vivências. Esse processo de escuta e participação ativa é essencial para que haja uma humanização do sujeito a partir do reconhecimento da importância da cultura que ele produz no cotidiano.

É um método que agrega, aproxima, traz a realidade cultural desses sujeitos para a cultura pedagógica e política do processo de ensino e aprendizagem, superando o fatalismo, o mutismo e o silenciamento coletivo. Freire parte do pressuposto de que o sujeito é produtor de cultura.

Em uma das suas experiências mais significativas, chega à cidade de Angicos (RN) e se depara com 75% da população sem domínio da leitura e da escrita. O analfabetismo era um dos maiores problemas do Brasil naquela época. Nesse contexto e valorizando a cultura popular e local, ele cria um jeito de inserir essas pessoas na sociedade através do processo de alfabetização, onde o ponto de partida não seria a compreensão do mundo pelo estado, pelo político ou pelo professor, mas pela visão de mundo do próprio sujeito.

Paulo Freire está entre os três teóricos mais citados no mundo em sua área. Pedagogia do Oprimido, sua obra clássica, está entre os 100 livros mais solicitados em universidades de língua inglesa, sendo o único livro brasileiro a aparecer na lista. Recebeu mais de 40 títulos de doutor honoris causa de diversas universidades pelo mundo, entre elas, Harvard, Cambridge e Oxford. Três instituições educativas internacionais criaram cátedras com o nome de Freire, entre elas a Highlander Center, no Tennesse (EUA), enfim, impossível colocar aqui tudo o que ele conquistou através de sua atuação.

 A grandiosidade do pensamento de Freire não está no título de Patrono da Educação Brasileira ou nas incontáveis homenagens que recebeu pelos impactos de sua obra pelo mundo. O educador brasileiro mais reconhecido e premiado da história, vibrava, chorava e se encantava com a emoção de um adulto que conseguia, pela primeira vez, escrever o nome simples de quatro letras da esposa no caderno e saia correndo para casa mostrar a companheira o seu feito, a sua conquista, a sua realização.

No ano em que é celebrado o centenário do seu nascimento, as pessoas irão descobrir um educador que defendeu a rigorosidade metódica ao mesmo tempo que valorizou os pequenos gestos e ações. Combatia o fatalismo mostrando valor e esperança através dos pequenos aprendizados, sempre levando em consideração a realidade cultural dos sujeitos. Um educador, um andarilho, um ser humano que reconheceu em vida as suas limitações.

Não acreditava no processo de ensino-aprendizagem tradicional e impositivo, trazendo uma realidade atípica, fora do contexto cultural e social do educando. Questionava e era duro com aqueles que tentavam manipular o pensamento do grupo, fazendo uma educação para eles e não com eles.