Os ‘Sonetos do Exílio’ II

23 de março de 2022 Off Por funes

Os ‘Sonetos do Exílio’ II por  José Mota Victor.

 

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 01/10/2021 .

 

O meu bisavô, o monarquista Miguel Fernandes Motta, antecipou sua viagem da fazenda gameleira para cidade pernambucana de Caruaru, quando tomou conhecimento que tinha chegado do Rio de Janeiro uma missiva do seu filho Augusto Fernandes da Motta. Estava faltando apenas três dias para passagem de ano, quando ele mandou selar o cavalo da viagem. À véspera de Ano-Novo, antes do jantar, reuniu os filhos em torno da grande mesa de jacarandá para ler a preciosa correspondência.

A carta era a presença espiritual do único filho que estava ausente a tradicional festa de final de ano que acontecia ininterruptamente há mais de três décadas na residência da família em Caruaru. Sobre a correspondência descansava um pequeno punhal que tinha no cabo de prata, em alto relevo, o brasão do Império do Brasil. Essa “white arm”, como o patriarca gostava de chamar, era guardada numa das gavetas da escrivaninha xerife e servia para separar as bordas das páginas coladas dos livros e abrir as missivas recebidas pela família.

De porte grave, com o seu conspícuo bigode chevron e cavanhaque à la “os três mosqueteiros”, pediu que todos ficassem de pé para o início das orações. Ordenou a Maria Francisca da Mota, sua esposa, o início do tradicional ritual de final de ano. Depois sentou-se na sua cadeira de madeira com assento e encosto em couro e abriu a correspondência com a ponta do punhal de prata. Leu a dedicatória da foto enviada pelo último gênito e entregou à esposa que foi passando silenciosamente para todos os filhos que estavam sentado em torno da mesa. Depois pigarreou e não escondeu a emoção quando abriu o opúsculo dos Sonetos do Exílio, recolhidos por um brasileiro e publicado na cidade de Paris, no ano de 1898.

 Era o maior presente que poderia ter recebido naquele final de ano, sempre foi um ardoroso defensor da Monarquia brasileira. O seu pai, Ricardo Fernandes da Mota, certa vez o levou para ver o Brasão da família na sala dos Brasões do Paço Real de Sintra, atualmente denominado Palácio Nacional de Sintra. Foi o rei D. Manuel I que reuniu na sala os 72 brasões das famílias principais da alta nobreza de Portugal, famílias essas consideradas ilustres em honra, história e bens. Depois que o pai apontou com o dedo indicador o desenho do brasão da família pintado no teto da famosa sala do Palácio, Miguel Fernandes Mota fez o juramento de defender a Monarquia portuguesa até o dia de sua morte.

Naquela solene noite de final de ano na cidade de Caruaru, o patriarca da família contou para os parentes o que sabia da partida da família imperial para o exílio: Era uma noite chuvosa do dia 17 de novembro de 1889. Na madrugada a carruagem negra seguiu em direção à baía de Guanabara, no coche apenas o Imperador, a Princesa Isabel e o Conde D’Eu, os demais seguiram a pé. A triste cena do vagaroso cortejo, iluminada pelos lampiões de gás, parecia uma procissão que se arrastava em direção ao cemitério, as senhoras de preto que seguiam abrindo caminho para carruagem lembravam velhas carpideiras com véus na cabeça, era o pungente retrato do enterro do Império do Brasil.

A família imperial esperou a noite toda a chegada dos principies que estavam em Petrópolis, quando finalmente chegaram as dez horas da manhã navegaram até a Ilha Grande e embarcaram no Vapor Alagoas com destino a Europa. O Imperador jamais retornaria ao Brasil. Depois, Miguel Fernandes Mota abriu o opúsculo enviado pelo filho e leu uma página para os presentes à reunião: Jamais ao Imperador se ouviu uma queixa dos muitos que o trahiram ou abandonaram: antes repetidas vezes procurava excusal-os, diminuindo-lhes o crime ou a cobardia e abrigando-os sob o manto da paternal magnaminidade. D’isto dão numerosos testemunhos os que do Snr. D. Pedro II se acercaram na Europa.

 Só não se doêra, porém, se não fosse homem; e este soneto é um desafogo íntimo. Entretanto não disfarçaremos ser o único sobre cuja authenticidade paira leve sombra de dúvida. Na copia, que tivemos presente, lia-se este dizer, à guisa de dedicatória: A M.D.F. – o que bem se poderia traduzir: A Manoel Deodoro da Fonseca. Ainda mais do que a d’este, porém, dêvera ter pungido ao Imperador a ingratidão de outros protegidos. Em seguida, com o sotaque dos tempos da adolescência em Lisboa, declamou o soneto Ingratos, o mais importante e famoso dos Sonetos do Exílio:

 

Não maldigo o rigor da iniqua sorte,

 Por mais atroz que fosse e sem piedade,

 Arrancando-me o throno e a majestade,

 Quando a dous passos só estou da morte.

 

Do jogo das paixões minha alma forte

 Conhece bem e estulta variedade,

 Que hoje nos dá continua f’licidade

E amanhan nem-um bem que nos conforte.

 

Mas a dôr que excrucia e que maltrata,

 A dôr cruel que o animo deplora,

Que fere o coração e prompto mata,

E’ ver a mão cuspir à extrema hora

A mesma bocca aduladora e ingrata

Que tantos beijos nella poz outr’ora.