Patrimônio rural e lugar de memória

22 de março de 2022 Off Por funes

Patrimônio rural e lugar de memória por Prof. Delzymar Dias

 

 Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data  de 09/04/2021 .

 

O poder público vem adotando uma política de contenção de despesas que atinge diretamente a educação no campo, já que perceberam que é mais barato transportar esse aluno para uma escola na zona urbana. Para se ter uma ideia do tamanho dessa tragédia educacional, em pouco mais de 20 anos, o Brasil fechou mais de 50 mil escolas do campo. Essa política é um erro, configurando uma espécie de silenciamento em relação as demandas desse lugar, que possui necessidades e problemas específicos, a exemplo de taxas inferiores de alfabetização e escolaridade, em comparação com as populações que habitam no meio urbano.

Uma das consequências práticas dessa política de fechamento de escolas no campo é a ausência de políticas culturais, educacionais e pedagógicas específicas para o contexto rural. Muitas vezes, esse aluno que mora no campo, cresce tendo a percepção de que a Educação Patrimonial só se aplica a cidade, já que não existem lugares e elementos viáveis para um trabalho de educação patrimonial na zona rural. Pensar assim é pensar errado.

O patrimônio cultural rural é tão importante quanto o urbano e traz consigo a mesma necessidade de apropriação, cuidado, entendimento, contextualização e preservação. Esse patrimônio cultural rural possui características especificas que precisam ser levadas em consideração, seja em relação a cultura material ou imaterial.

Um exemplo desse patrimônio rural no município de Patos são vários cemitérios pequenos construídos no início do século 20. Conhecidos como “Cemitérios dos Bexiguentos”, estão espalhados por algumas comunidades rurais e seu contexto foi uma grande epidemia de varíola que ocorreu no século 20. Por medo do contágio, essas pessoas não eram sepultadas nos cemitérios públicos convencionais.

Apenas na cidade de Patos, cerca de 400 pessoas morreram vítimas da Varíola. A educação e a cultura interdisciplinar pode ser uma aliada na preservação desses espaços. Professores de História, Literatura e Ciências podem atuar em conjunto com as instituições culturais da cidade, a exemplo da Fundação Ernani Sátyro (Funes), no sentido de ampliar as discussões sobre esses lugares excepcionais de produção de memória.

 A discussão pode começar na Ciência, falando sobre a varíola, uma das doenças mais terríveis da história. Com registros de contaminação que datam de cinco mil anos, vitimou mais de 300 milhões de pessoas somente no século 20, tendo sido erradicada completamente na década de 1980. Os efeitos dessa doença deixaram marcas não apenas na saúde, na história e na ciência.

A literatura foi campo fértil para histórias que tinham como referência os chamados “bexiguentos”. Em Tereza Batista Cansada de Guerra, o escritor baiano Jorge Amado diz que “A bexiga chegou com raiva, tinha gana antiga contra a população e o lugar, viera a propósito, determinada a matar, fazendo-o com maestria, frieza e malvadez, morte feia e ruim, bexiga mais virulenta.” Na história, a protagonista se comove com o sofrimento da população e inicia uma cobrança ao poder público por vacinas e tratamentos, começando, ela mesma, junto com as suas companheiras de prostíbulo, a cuidar dos moradores, já que o médico e a enfermeira que trabalhavam no posto de saúde da localidade, não suportaram o medo do contágio e fugiram. Os Cemitérios dos Bexiguentos constituem locais de memória que são, do ponto de vista pedagógico, patrimonial e cultural, espaços a serem explorados, restaurados e ocupados.

Histórias como essa dificilmente encontram espaço nas grades curriculares tradicionais e conservadoras. Precisamos acordar para a exploração do novo, estimular o aluno a entender o que acontece não apenas fora do seu tempo histórico, mas também fora dos espaços formais da escola.