Sabe o que eu queria agora?

9 de outubro de 2023 Off Por funes

Sabe o que eu queria agora? porJerdivan Nóbrega de Araújo.

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 06/10/2023.

Eu queria um tempo em que as pessoas, ao se cruzarem nas ruas, se cumprimentassem pelo nome, como faziam os meus pais quando eu era criança. Um tempo em que o pão e o leite eram deixados, nas madrugadas frias, pelos padeiros e leiteiros, nas soleiras das portas e janelas, e ali ficariam até que os donos das casas acordassem sonolentos para tomar o seu café na mesa da cozinha com a sua numerosa prole.

“À sombra de uma árvore, lendo as poesias maliciosas de Manuel Bandeira”

“À sombra de uma árvore, lendo as poesias maliciosas de Manuel Bandeira”

Ir à bodega com uma caderneta e trazer uma quarta de qualquer coisa, sem a preocupação de passar cartão disso, cartão daquilo ou consultas à Serasa. Eu queria, agora, falar com alguém que me amasse sem antes perguntar quanto eu ganho, o que eu sou, o que eu tenho. Eu queria falar com alguém que me ouvisse sem me interromper, para só depois cairmos juntos em inexplicáveis gargalhadas. Não ter que mudar a sintonia do rádio de casa para que meus filhos não escutem certas letras de músicas. Eu queria um tempo em que músicas maliciosas tinham letras como procurando tu ou eu tava na peneira tava peneirando, eu tava no namoro eu tava namorando.

A inocência dos namoros no escuro de um cinema do interior; serenatas numa janela entreaberta, onde a amada encosta o ouvido nas frestas para ouvir os acordes de um violão ou o solo de um sax. Se um olhar poderia dizer todo o amor, também um olhar de reprovação de um pai dizia mais do que mil palmadas de um professor primário, punição de um erro somatório.

Carro novo era Jeep, Rural, Fusca. Caminhonete era só da Chevrolet. Outro modelo diferente desses, já se aglomeravam crianças e abriam-se janelas pela novidade. Cantador de cordel era astro de feira livre e duplas de poetas violeiros eram estrelas que visitavam a cidade uma vez por ano. Comícios eram realizados em cima de caminhão Fenemê 1955. Discursos de políticos eram igualmente mentirosos, mas as promessas eram possíveis: emprego público, cesariana, apadrinhar crianças e comparecer a casamentos de filhas de eleitores.

Sabe o que eu queria agora?

Morar no interior e poder sentarme à sombra de uma árvore, lendo as poesias maliciosas de Manuel Bandeira, como eu fazia no meu tempo de João da Mata. “Descoberta de rua! Os vendedores a domicílio. Ai mundo dos papagaios de papel, dos peões, da amarelinha! Uma noite uma menina me tirou da roda de coelho-sai, me levou, impiedosa e ofegante, para um desvão da casa de dona Aninha. Viegas, levantou a sainha e disse: mete. Depois meu avô… Descoberta da morte! Com 10 anos vim para o Rio. Conhecia a vida em suas verdades essenciais. Estava maduro para o sofrimento. E para a poesia.” (MB)

Eu, porém, pensava sempre que o rio do poeta era o mesmo que eu já tinha, e que era só meu e corria ali por trás da minha casa. As horas na sirene de uma fábrica, a maleta preta encardida do médico da família, que aviava penicilina para garganta, Staphylase para afinar o sangue e Padrax em pó para arrancar as lombrigas. O moleque atravessando a rua nas carreiras para avisar à parteira que havia chegado a hora. As difusoras dos postes que informavam a hora dos enterros. Chegando à janela, as mulheres benziam-se à passagem do cortejo. Naquela época, morrer era uma raridade: não se morria tão jovem como hoje. Eu queria, agora, morar no interior.

Por onde andam as estrelas que eu contemplava no céu da minha cidadezinha? Aqui elas são tão raras! A vida é cara!

Sabe o que eu queria agora?

O cheiro do café e do pão posto à mesa e a minha mãe me chamando para o lanche da tarde, o silêncio das quinze horas nas ruas desertas de Pombal, o cheiro da terra molhada nas primeiras chuvas de inverno, os lavradores comentando o início da plantação, e o pé de vento fazendo redemoinho na rua principal da minha cidade.

Eu, que, por aqui, nunca mais vi o Saci Pererê. Ainda se colocavam fundos em latas, consertavam-se panelas de alumínio, fabricavam-se copo de dente para tirar água do pote e não se negava um copo d’água.

Acho que ainda não estou maduro o bastante para o balançar dos tempos, para conhecer a vida em suas verdades essenciais, para o sofrimento e para a poesia. Eu preciso urgentemente de um mestre, um professor que me ensine uma forma de viver sem ser assombrado pelo passado.